quarta-feira, 16 de maio de 2012

Fernando Pessoa na obra Claraboia de José Saramago


Aprendera tantas coisas no decurso da vida, que ser-lhe-ia relativamente fácil arranjar uma colocação estável que lhe assegurasse o necessário à vida. Nunca tentara dar esse passo. Não queria prender-se, dizia, e era verdade. Mas não queria prender-se porque, então, seria confessar a inutilidade do que vivera. Que ganhara em fazer tão largo rodeio para, afinal, vir dar ao caminho por onde seguiam aqueles que resolutamente quisera deixar? «Queriam-me casado, fútil e tributável?», pergunta o Fernando Pessoa. «É isto o que a vida quer de toda a gente?», perguntava Abel.
O sentido oculto da vida…«Mas o sentido oculto da vida é não ter a vida sentido oculto nenhum.» Abel conhecia a poesia de Fernando Pessoa. Fizera dos seus versos uma outra Bíblia. Talvez não os compreendesse completamente, ou visse neles o que lá não estava. De qualquer maneira, e embora desconfiasse de que, em muitos passos, Pessoa troçava do leitor e que, parecendo sincero, o ludibriava,  habituara-se a respeitá-lo, até nas suas contradições. E, se não tinha dúvidas da sua grandeza como poeta, parecia-lhe, por vezes, especialmente naqueles dias absurdos de desencanto, que na poesia de Pessoa havia muito de gratuidade. «E que mal há nisso?» - pensava Abel. – «Não pode a poesia ser gratuita? Pode, sem dúvida, e o mal não é nenhum. Mas, o bem? Que há na poesia gratuita? A poesia é, talvez, como uma fonte que corre, é como a água que nasce na montanha, simples e natural, gratuita em si mesma. A sede está nos homens, a necessidade está nos homens, e é só porque elas existem que a água deixa de ser desinteressada. Mas será assim a poesia? Nenhum poeta, como nenhum homem, seja ele quem for, é simples e natural. E Pessoa menos que qualquer outro.
Quem tiver sede de humanidade não a irá matar nos versos de Fernando Pessoa: será como se bebesse água salgada.”

p. 266, 267

1 comentário:

  1. Livro claramente cinematográfico, daria uma boa película rodada em Portugal... Saramago em si mesmo!

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