“Aprendera
tantas coisas no decurso da vida, que ser-lhe-ia relativamente fácil
arranjar uma colocação estável que lhe assegurasse o necessário à
vida. Nunca tentara dar esse passo. Não queria prender-se, dizia, e
era verdade. Mas não queria prender-se porque, então, seria
confessar a inutilidade do que vivera. Que ganhara em fazer tão
largo rodeio para, afinal, vir dar ao caminho por onde seguiam
aqueles que resolutamente quisera deixar? «Queriam-me casado, fútil
e tributável?», pergunta o Fernando Pessoa. «É isto o que a vida
quer de toda a gente?», perguntava Abel.
O
sentido oculto da vida…«Mas o sentido oculto da vida é não ter a
vida sentido oculto nenhum.» Abel conhecia a poesia de Fernando
Pessoa. Fizera dos seus versos uma outra Bíblia. Talvez não os
compreendesse completamente, ou visse neles o que lá não estava. De
qualquer maneira, e embora desconfiasse de que, em muitos passos,
Pessoa troçava do leitor e que, parecendo sincero, o ludibriava,
habituara-se a respeitá-lo, até nas suas contradições. E, se não
tinha dúvidas da sua grandeza como poeta, parecia-lhe, por vezes,
especialmente naqueles dias absurdos de desencanto, que na poesia de
Pessoa havia muito de gratuidade. «E que mal há nisso?» - pensava
Abel. – «Não pode a poesia ser gratuita? Pode, sem dúvida, e o
mal não é nenhum. Mas, o bem? Que há na poesia gratuita? A poesia
é, talvez, como uma fonte que corre, é como a água que nasce na
montanha, simples e natural, gratuita em si mesma. A sede está nos
homens, a necessidade está nos homens, e é só porque elas existem
que a água deixa de ser desinteressada. Mas será assim a poesia?
Nenhum poeta, como nenhum homem, seja ele quem for, é simples e
natural. E Pessoa menos que qualquer outro.
Quem
tiver sede de humanidade não a irá matar nos versos de Fernando
Pessoa: será como se bebesse água salgada.”
p. 266, 267
Livro claramente cinematográfico, daria uma boa película rodada em Portugal... Saramago em si mesmo!
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