domingo, 5 de dezembro de 2010

O meu avô

O meu avô fascista - era assim que eu o apelidava, mas de maneira carinhosa (!) porque foi procurador à Câmara Corporativa e, mais tarde, convidado por Marcelo Caetano (seu professor na Faculdade de Direito) para o cargo de presidente da câmara de Loures.
O meu avô não era fascista - diz Manuel Braga da Cruz que Portugal não teve um regime fascista mas autoritário -, teve um pide à porta durante todo o tempo que assumiu cargos políticos (talvez antes também lá estivesse, mas o meu avô era distraído e nunca reparou). Um dia foi chamado pelo presidente do Conselho porque numa entrevista disse que em Loures não havia comunistas mas pessoas com fome. Marcelo Caetano não sabia o que era pior se o comunismo, se a constatação pelo presidente da câmara de que havia fome!
Não foi personagem digna de registo, as suas fábricas não foram nacionalizadas nem tomadas de assalto pelos trabalhadores, sinal de que foi um patrão justo. As malas estiveram feitas para partir para o Brasil, mas não foi necessário.
O meu avô padrinho, benemérito, caridoso ou, como se diz agora, solidário - foi padrinho de centenas de crianças e assumiu as suas responsabilidades. Ainda jovens chegavam a Lisboa, vindas da terra (da província!), ficavam em sua casa. Ele arranjava-lhes trabalho, orientava-os na vida, escrevia cartas de recomendação, pedia a este ou àquele amigo para empregar o seu afilhado ou afilhada. Deixava estudar os que queriam estudar. Quando chegávamos à aldeia, só ouvíamos "ó padrinho", seguido de um pedido. O meu avô ouvia em silêncio e dizia: Vou tratar disso, fosse um problema de emprego ou familiar.
O meu avô empreendedor, com o toque de Midas - poderia ter feito o seu caminho no exército, onde se ficou por capitão (patente que antecedia o seu nome, era "o capitão Baptista"); mas preferiu a vida civil, criou empresas, fábricas, dedicou-se à agricultura. Procurava as técnicas mais modernas, usadas na Alemanha, nos EUA ou em Israel e exportava-as, aplicava-as. Era um visionário e tinha a força e a coragem de concretizar o que imaginava.
O meu avô sovina - estava-lhe nos genes, herdados dos cristãos novos da Beira Baixa. Há uns dias encontrei um envelope do meu aniversário, de 1988, onde apontei as quantias que cada um me tinha oferecido, ele que era quem tinha mais, foi o que deu menos, cinco mil escudos. Foi assim com os filhos e com os netos, obrigando-os a fazer o seu caminho, não queria gente dependente, mandriona, a viver à conta dele.
O meu avô ausente - as refeições eram feitas em silêncio. Ele era o chefe da família, tinha um lugar de destaque à mesa e uma criada plantada atrás dele para acorrer a todos os desejos do "senhor capitão". Ele comia pão integral, alho crú, muita fruta, legumes e tudo o que o fizesse viver centenas de anos. Nós comiamos calados, se nos ríssemos olhava-nos com tal dureza que engoliamos o riso. Nunca se riu connosco. Quando nos falava era para desenhar o nosso futuro. Queria um neto advogado (seria eu), um farmacêutico, um engenheiro, um arquitecto... Teve azar! Eu fiz dois anos e mudei de curso - a última carta que me escreveu (comunicava connosco por escrito, embora morássemos na mesma casa) pedia-me que eu fosse terminar Direito. Antes de mim, o filho também o contrariou, embora seja professor universitário, não é de Direito!
O meu avô velhinho - não viveu centenas de anos, viveu 96 anos e nove meses - com o passar do tempo tornou-se uma criança, como todos os velhos. A máscara da dureza caiu e ria-se para nós, fazia-nos festas, apertava-nos as mãos como quem diz que ama e que está agradecido pela família que tem. Podia ter morrido sozinho, mas o tempo apaga as mágoas, os gestos frios e as palavras ditatoriais ficaram lá longe e ali só estava um velhinho.
Levei a véspera e o meu dia de anos a tratar de papéis, a certidão de óbito, a funerária, os avisos à família, a escrita do obituário, a cerimónia fúnebre, a receber os pêsames, logo seguidos pelos parabéns. O resto da família esteve perdida em lágrimas e emoção pela perda do velhinho, não do homem que foi, nem do que construiu.
Já o sabia, mas confirmei que tenho muito dele em mim: sou prática e organizada, sei o que quero para o futuro dos meus filhos (embora vá ter azar, como ele teve!), mas não quero cometer os mesmos erros. Por isso, adoro apertar as mãos dos meus filhos, beijá-los; adoro abraçar os meus sobrinhos até os sufocar, de estar disponível para todos, de rir às gargalhadas à hora da refeição, de não os olhar com dureza (embora às vezes me apeteça), de estar sempre presente.
José da Silva Baptista morreu dia 3 de Dezembro, às 17h05, em sua casa, em Lisboa. Foi sepultado no jazigo de família em Valverde, Fundão, no dia 4 de Dezembro. As serras da Gardunha, de um lado, e a da Estrela do outro, estavam brancas de neve.
BW
PS: Na foto, o meu avô inaugura a chegada da água canalizada a Montemor, Loures.

4 comentários:

  1. Não será Câmara Corporativa?
    Grande pessoa, que também as havia no Antigo Regime.
    Os meus sentimentos.

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  2. tem toda a razão! vou já corrigir. Foi um lapso justificável: o meu avô teve uma revista chamada "A Cooperação"!

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  3. Maria Nazaré Oliveira7 de dezembro de 2010 às 18:35

    Excelente Texto! Que bela homenagem!
    Os meus pêsames.

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  4. Lindo :) Adorei...Estou certo que o Avô estará lá em cima a sorrir, a abraçar e dizer o quanto gostA de ti. JP

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