fundamentalmente lúdico que anima todas as formas de arte, pelos jogos de
palavras, pelo misterioso poder que têm as palavras, não só para designar o
mundo, mas também para criar o mundo. De facto, a literatura é, sobretudo,
uma arte de fazer de conta; é, como Blanchot diz, ilusão; ou fingimento,
como, por sua vez, diz Pessoa. Quando lemos um livro, suspendemos a
incredulidade. À porta de qualquer obra literária está sempre a inscrição:
“Para aqui entrares, tens que fazer de conta que acreditas”.
O poeta [a poesia é o campo de observação por excelência da
literatura pois a poesia é, talvez, literatura em estado puro] o poeta, dizia
eu, escreve, ou faz de conta, com a mesma seriedade com que uma criança
brinca. As fronteiras teóricas entre literatura e verdade, entre Dichtung e
Wharheit, são, como nos jogos infantis, hesitantes e imprecisas. Para os
românticos [e românticos, ou seus herdeiros, todos nós somos, ou ainda
menos] a dor é a mãe de toda a verdadeira poesia. Mas a dor e o sofrimento
sinceros, isto é, sem fingimento, são a mãe [e o pai, e a família toda] da
maior parte da má poesia que se escreve. Muita da grande poesia pode
ter nascido da dor, mas o que a autonomiza da dor e a diferencia do mero
espasmo doloroso é o fingimento, a capacidade de o poeta fingir “a dor que
deveras sente” tornando-a poeticamente verdadeira. A poesia é forma, e
essa é a sua verdade. Se a dor do poeta que eventualmente terá gerado o
poema é “verdadeira” ou “falsa”, a sua verdade por assim dizer “vivida”, é
assunto, como diz Jacobson, com interesse apenas para a Medicina Legal. (...)
Na poesia, as palavras e as suas relações são as formas que os nossos
sentimentos ou a memória deles tomam. Com elas, o poeta, como a criança
brincando, cria, escrevendo, uma verdade outra, tão ou mais verdadeira.
Uma verdade autónoma, cuja autenticidade não depende da verdade ou
da não-verdade do sentimento [e quem diz sentimento diz pensamento ou
mera impressão ou emoção] que eventualmente lhe terá estado na origem. "
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