quarta-feira, 15 de abril de 2015

A esquizofrenia de quem escreve pré-AO

Na terça-feira, um conjunto de professoras da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa organizaram um encontro contra o acordo ortográfico (AO). Convidaram-me para fazer uma pequena intervenção e aceitei o convite porque tenho uma dívida de gratidão para com a professora Cristina Pimentel, responsável pelo Centro de Estudos Clássicos daquela instituição e é quem nos revê (a mim e à Ana Soares) os livros do Olimpvs.net, além de produzir conteúdos para o nosso site. Como dizer que não?

A intervenção que preparei era curta. Mas tornou-se ainda mais curta, face ao adiantado da hora e ao número de pessoas que ainda iria falar. Aqui fica a versão completa:

A minha luta com o AO começou nos finais dos anos de 1990, na faculdade, quando este nos foi apresentado. “Mas que disparate!”, pensei, à medida que o professor nos falava a evolução da escrita do Português, das principais mudanças e de nós, os alunos, criticarmos coisas que nos pareciam tão estapafúrdias como “Egipto“ (sem "p") e “egípcio”. Lembro-me do professor relativizar e comentar que certamente também custou aos portugueses deixar de escrever farmácia com “ph”, como quem diz que era só uma questão de nos adaptarmos.

Passaram 20 anos, desde que fui apresentada ao acordo e não vou discuti-lo, antes falar da minha experiência do dia-a-dia. Ao meu texto chamei “a esquizofrenia de quem escreve ‘à antiga’” e passo a explicar:  Os meus dias são passados a editar textos. Edito textos de colegas que escrevem como eu e como todos os jornalistas do PÚBLICO, ‘à antiga’; mas também dos estagiários que escrevem com o novo acordo; dos comentadores e opinion makers que, uns escrevem à antiga e outros à moderna! E aos quais devo todo o meu respeito pelas suas decisões, embora saiba que muitos escrevem só porque o programa no computador os impele a fazê-lo. Nada mais.

Edito ainda as notícias da Lusa que escreve à moderna. E aí, os meus dedos no teclado estão entre o “c” e o “p”. Para quem ainda escreve ‘à antiga’, não imaginam a quantidade de “c”, sobretudo de “c” que caíram! Por exemplo, na frase “Este foi o primeiro estudo a quantificar os múltiplos factores ambientais que afectam o Oceano Antárctico” caíram três, a saber: factores, afectam, Antárctico.

Além de acrescentar letras, mudo minúsculas para maiúsculas nos meses do ano, nas estações do ano, nos pontos cardeais… Mais os hífens nos fins-de-semana, cor-de-rosa...

E, durante as minhas horas de expediente, cada take da Lusa que cai, se me interessa publicá-lo no site, é um texto que encho se “c” e “p” que se perderam pela linha da Internet.

Depois, quando saio do jornal e me sento à frente do meu computador, em casa, para escrever sobre heróis do Olimpvs.net ou livros para professores e pais, tenho de fazer o exercício oposto: tirar todos os “c” e os “p” porque não há editora que não se tenha rendido ao acordo!

Ah! Então o problema é só os “c” e os “p”, pensará a plateia. Não, é mais do que isso. O escrever com o acordo obriga-me a reformular frases, a dar voltas, a ser criativa só porque me recuso a escrever, por exemplo, “pára” sem acento. Um herói à altura de viver aventuras não “para”. Jamais “para para” falar com alguém. Ele “pára”, com acento. Mas como não o pode fazer com o novo acordo, um deus do Olimpo “estaca”, “abranda o passo até parar”, “detém-se perante o vilão”, mas nunca “para”.

Chamem-me velha do Restelo, mas os novos como os meus filhos adolescentes que são obrigados a escrever com o acordo sob pena de serem penalizados nos exames nacionais do secundário, acham-no igualmente estúpido. Também eles são uns velhos do Restelo. Saem à mãe!

Obrigada