Começar é fácil. Acabar é
mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número
da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o
coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do
início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do
barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez
menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais
difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a
actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se
com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima
comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou
perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores.
Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos
continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos
guardiões.
É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer
palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma
paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas —
sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue
os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da
animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
(...)
Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento
duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é
um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer.
Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá
verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a
porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o
amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É
por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra
dela.
Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade.
Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada
mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao
contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é
gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar,
absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as
galinhas. O difícil é continuar.
Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'